O trabalho Desapropriam-me de mim surge do encontro da artista visual Miriane Figueira com fotografias de uma época naturalista, período onde o registro fotográfico do corpo humano tornava-se catálogo ou cartão de visitas, objetos comercializados em geral por fotógrafos ou donos de escravos, seguindo assim os passos das teorias antropométricas de Francis Galton, conhecido como “o pai da Eugenia”, que preocupava-se em criar uma identificação criminal com base nas medidas do corpo humano.
Para este trabalho, tem-se como matéria prima para a criação das obras parte deste acervo, mais especificamente, as fotografias de negras, escravizadas e nuas, que nesta mesma época serviam também como exemplares humanos com finalidades científicas de gênero e raça ou como ferramenta de entretenimento ou então vendidas como imagens de seres “estranhos”. O exemplo mais conhecido da comercialização destas imagens, é o caso de Sarah Baartman popularmente conhecida com a negra das ancas grandes, que levada a Europa foi exposta às cortes, onde, por vezes, havia sido comparada a um animal exótico. A exposição de seu corpo cumpria uma única finalidade: ser alvo de chacotas. A negra, escravizada, foi vendida como objeto pois possuía pernas, seios e ancas fartas, o que intrigava o povo europeu. Após a morte de Sarah, seu dono cortou partes de seu corpo e as expôs na Europa, até que, em 2002, Nelson Mandela conseguiu autorização para que seus restos mortais tivessem o seu devido fim e retornassem a seu estado de origem.
A utilização das imagens de pessoas escravizadas em catálogos estabeleceu uma relação de anonimato do sujeito pois, na identificação destes indivíduos, as imagens recebiam apenas a legenda com o “tipo” ou origem, dados que os incluíam em nichos, intitulados apenas como crioulo, negro mina, gabão, cambinda e etc. Isso, juntamente com o período da diáspora negra e a cultura europeia em voga, tornaram estes fatores os indicadores determinantes para a negação de uma identidade afro-brasileira. A desapropriação do sujeito fez com estas pessoas negras negassem suas origens, pois serviam de chacotas entre a corte. O filósofo e sociólogo Roland Barthes em um outro contexto, relaciona os álbuns fotográficos ou fichários a uma fragilidade de identidade e autonomia que cabe muito bem ao contexto desta pesquisa, pois “os outros – o outro – desapropriam-me de mim mesmo, fazem de mim, com ferocidade, um objeto, mantêm-me à mercê, à disposição, arrumado, em um fichário preparado para todas as trucagens sutis” (Barthes, 1984, p. 29). Neste contexto, pode-se dizer que coisificaram o ser humano e deram-lhe títulos que os tornavam anônimos e desprovidos de identidade, algo que apenas com politicas de afirmação poderá ser revertido.
No caso especifico das mulheres nuas, faz-se uma relação com o abuso sobre o corpo do outro, uma vez que não raro neste período da diáspora negra, as mulheres são retratadas com vestidos abaixados, deixando registrado em imagens fotográficas as marcas sutis da violência contra o corpo feminino, negro e escravizado. Em “Negros no Estúdio do Fotógrafo”, Sandra Sofia M. Koutsoukos indica que estas pessoas escravizadas não eram meramente modelos e jamais seriam vistos como um objeto de cena. A autora sugere que estes personagens se davam a ver, pois enfrentavam o fotógrafo naturalista através do olhar. O embate existe, mas não minimiza a fatalidade do que significava o posar naquele momento histórico, e acaba nos direcionando a um ato de subordinação social. Neste caso, pode-se pensar que a fotografia em si serve como instrumento de dominação ou objeto de posse. (Koutsoukos, 2010, p. 131)
O projeto Desapropriam-me de mim vem pensar este corpo forçadamente nu, sobre o que é ser mulher negra nos dias de hoje e quais foram os possíveis caminhos que período escravocrata tomou para colaborar com o embranquecimento e negação de uma cultura negra. O trabalho assume também em uma esfera poética, a reflexão sobre a não-violência e transita intimamente em questões na formação de identidade de um determinado meio, ressignificando e criando uma nova memoria coletiva sobre o fato, e assim auxiliando na esfera da auto-estima dos afro-brasileiros.
Em se tratando de ressignificação, este projeto prevê também a utilização destas obras como ferramenta de afirmação para afro-brasileiros, auxiliando e servindo de matéria-prima para algumas estratégias já estabelecidas nacionalmente, como politicas de cotas e inclusão de ensino da história e cultura afro-brasileira. Tem-se a informação de que as imagens do período da diáspora negra trouxeram consequências relacionadas à auto-estima, aceitação e ascensão social. Logo, transformar positivamente retratos de um abuso é, em primeiro lugar, ressignificar a memória coletiva do negro brasileiro, uma vez que as imagens utilizadas como eixo central deste trabalho, por muito tempo, foram utilizadas de forma negativa na construção de identidade dos mesmos.
Ao costurar vestidos/roupas nestas mulheres, discute-se também o papel da memória coletiva, pois “pensar sobre a roupa, sobre roupas, significa pensar sobre memória, mas também sobre o poder de posse” (Stallybrass, 1993, p. 12). Pensar a roupa como identidade é pensar a memória dos afro-brasileiros, que por muito tempo negaram sua ancestralidade, em parte pelos motivos citados anteriormente ou por conta dos parâmetros de beleza apenas europeus. Reescrever esta história através destas obras, e utilizar delas para as contra-partidas sociais destinadas a escolas que necessitam da implementação da lei de ensino de história e cultura afro-brasileira, é tornar a história lúcida e, portanto, positiva. Pode-se dizer que este projeto tem a intenção sócio-política de criar ferramentas de afirmação e identidade de afro-brasileiros ao vestir estas negras, trazendo ao consciente coletivo a sua identidade, pois as roupas “agora vestem seus próprios eus” (Stallybrass, 1993, p. 17).
Referência bibliográfica:
BARTHES, Roland. A câmara Clara: Notas sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no Estúdio do Fotógrafo. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2010
STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: Roupas, memória e dor. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora, 2012